quarta-feira, 17 de novembro de 2010

CONTOS DA NOSSA TERRA …(continuação)


Ozendo, do nosso desapego forçado


    O José Augusto ainda está desesperadamente à espera de se conformar com esta despedida. A angústia e a ansiedade apoderam-se dele com frequência. A solução passa por dar uma escapadinha às origens, sempre que pode, nem que seja só, para respirar aqueles abençoados e puros ares, espairecer, as vistas na riqueza de tanto arvoredo e paisagens verdejantes sem igual. Assim sim!... renasce-lhe uma alma nova. Sim, ele prefere retornar aqui para reganhar forças mesmo quando na diáspora - ora aqui, ora ali, quer seja em Bruxelas, em Munique, em Paris, Ile-de-France em New York, New Jersey, California, ou até Benguela, Luanda e Catete - tal qual o conterrâneo Manuel António Pina, que diz ter tido que nascer outra vez, fora da sua terra, para se sentir vivo.


    Que grande alvoroço com que se acordara neste dia lá em casa!... parecia - e estava mesmo - tudo de pantanas. Camas desmontadas, roupas dobradas e sobrepostas em camadas, malas arrumadas umas, outras em arrumação, sacos de batatas, de feijão, de castanhas, de garbanços tudo para ali encostado não sabia muito bem porquê!... O meio da casa estava um autêntico labirinto ele no seu tamanho minúsculo perdia-se nele. Até a salgadeira andava a monte com os restos da desmancha do porco à volta com chouriços, farinheiras, morcelas e o saborosíssimo entrecosto curtido.


    ... Ao colo da mãe?... É como quem diz..., isso era o que a mãe lhe queria impor à força, que ele não estava quieto nem por um momento. Parecia ter bichos carpinteiros, como lhe repetia.

    Embora ele não compreendesse ainda o que se estava a passar, só sabia que o momento era de grande agitação, um misto de festa e de preocupação e isso, ele não queria deixar passar ao lado.

    - Está quieto, Zé olha que me sujas a roupa toda -resmungava a mãe.

    - Oh!... Deixe-me... - Era quanto o José Augusto tinha para dizer.

    - Olha que fazes uma asneira e levas uma nalgada. Se não estás quieto, digo ao teu pai.

    - Diga!... que me importa?... Ele não a ouve - era a vez de ele resmungar. Não que ele fosse mal educado por sistema, mas porque sabia que naquelas circunstâncias, num misto de euforia, de azáfama e de preocupação, tinha o direito e sobretudo a liberdade de responder como bem entendesse porque sabia que nenhum mal viria ao mundo.

    Entretanto, traquinice para aqui brincadeira para acolá, sem saber como, pareceu-lhe ver, ao olhar pela janela, tudo a ficar para trás. Estaria com alucinações? Estaria ainda na cama a sonhar?... Nada disso. Sem se dar conta tinha desengatado e destravado a camioneta, tudo num ápice. Esta começou de imediato a engolir centímetro a centímetro metro após metro, ganhando cada vez mais balanço, em direcção ao Ribeiro Chão de Porto, lá ao fundo do acentuado declive.

    - Acudam!... Acudam!... Aqui d’el rei. Ai quem acode... Valha-me Deus... Jesus, Maria e José nos valha... Acudam... Socorro... Socorro.

    O José Augusto atarantado e surpreso, via sua mãe esbracejar, virando-se para um lado e para o outro, para frente e para trás sem perceber o que se estava a passar.

    O Germano que estava lá atrás em cima da carroçaria a dar uma ajuda na arrumação dos escassos móveis, com a destreza que lhe era habitual, num abrir e fechar de olhos, saltara para o chão, correra para a cabina agarrado ao taipal e conseguira deitar a mão ao fecho da porta tentando desesperadamente abri-la ao mesmo tempo que puxava para trás, especando-se com os pés no solo que teimava em escapar-lhe, na tentativa de fazer parar aquele monstro. Em vão… Ele que era um homem possante, que já tantas vezes fizera parar, o seu carro de bois em circunstâncias parecidas bastando-lhe agarrar-se às aduelas, sentia-se agora impotente. Era escusado. Não via meios de salvar a mulher e o filho de morte certa esborrachados lá em baixo contra um qualquer freixo ou amieiro que bordejavam o ribeiro. Cada vez a camioneta embalava mais. Agora, ora pendurado na porta, ora fazendo que ainda controlava a corrida, insistia em gritar:

    - Ó mulher saltai a baixo. Abre a porta – encorajava ele.

    - Não abre – respondia a mulher, engalfinhando a mão em tudo o que era pinchavelho, menos naquele em que devia. E a camioneta cada vez embalava mais... e mais.

    - Abre o vidro e dá-me cá o garoto, depois salta tu - gritava o Germano em desespero de causa, já a suar e prestes a entrar em pânico. Pois sim. Era a mesma coisa que nada nem a Maria Cláudia prestava atenção às suas palavras nem ele se fazia sequer entender. Era um pandemónio. Até que:...

    - Pronto. Pronto. Não foi nada - ouvia balbuciar a seu lado com uma voz tranquila e assombrosamente calma, já com uma mão no travão outra no volante, Jaime Peixoto, o motorista, que entretanto depois de se debater lá atrás com a carga mal acondicionada saltara da carroçaria directamente para a cabina sem fazer alarido e discretamente, conseguiu sentar-se no lugar, que afinal era o dele.

    - Ufa... - Respiraram todos de alívio. Enquanto isso o Germano estatelava-se no chão, projectado pela travagem brusca do veículo, já na subida que ladeava a Tapada Ti Zé Vaz. Ao mesmo tempo que praguejava, raios e coriscos circulavam a sua aturdida cabeçorra, que parecia agora, pesar dez vezes mais:

    - Porra!... Porra!... parecia que já estava quase parado e ainda dei um trampásio que me espaparrei ao comprido - clamava, virando-se agora para o José Augusto, enquanto tentava acalmar-se - Raio do garoto que nunca está quieto…

    - Depois das últimas arrumações na caixa da velhinha e simpática Berliet, após muitas e chorosas despedidas, seguramente de mais de metade da aldeia,… lá arrancaram finalmente para onde parecia ser o fim do mundo.

    - Olha Pai, o que é além naquele monte?

    - É Guarda, filho, e lá no ciminho vê-se o castelo. Estás a ver?

    - Parece já ali… não parece?

    - Parece!?... Parece… que o diga o Tio Manel Tate, que quando ia pagar o foro da Quinta do Prado Fundeiro, ao feitor do Conde Tarouca, lá no Solar do Lactário com o carro das vacas carregadinho de centeio, demorava um dia inteiro.

    - Tanto tempo pai?... Então além deve ser o Cabo do Mundo.

    No entanto, o rumo era tão só, a cidade mais alta, qual baluarte, sentinela sempre vigilante, em defesa do solo pátrio com o altaneiro castelo, agora reduzido àquela imponente torre de menagem que se vislumbra apenas à distância de umas chancas de gigante, lá ao cimo de outeiros e colinas, com a altivez de quem está no topo do mundo.

    Era o começo de uma nova vida completamente diferente, tão diferente quanto o é, a mudança de um pequeno mundo, a aldeia, remota, verdejante, airosa, plena de liberdade - em suma paradisíaca - para o anonimato da fria, forte, fiel farta e formosa mas ao mesmo tempo austera cidade da Guarda, com um corrupio de acontecimentos macabros e um polícia a cada esquina.
    No Outono seguinte, por ironia, ali estava ao colo da mãe, após terem carregado todos os tarecos, na plataforma-caixa de uma camioneta de carga, já do tempo da guerra, daquelas que pareciam andar de calças arregaçadas. O destino quis que esperasse pela partida, mesmo ao fundo das escadas que ele tanto desejou, um dia após outro, subir e descer com a sacola carregadinha de livros e cadernos. Agora já nem tinha coragem de olhar para lá, já pressentia a nostalgia que lhe iria roer a alma pela vida fora.
    Ali estava ele, vivinho da Silva, pois então, sempre sobrevivera.

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